Resumo
Este ensaio traça a cronologia dos marcos legais relativos à cannabis no Brasil, desde sua introdução pelos negros escravizados até a descriminalização moderna. O texto aborda as primeiras tentativas de regulamentação no século XIX, influências internacionais no início do século XX, e as políticas de repressão das décadas de 1930 a 1980. Avanços significativos ocorreram a partir dos anos 1990, com discussões sobre uso medicinal e reformas nas políticas de drogas, culminando na decisão histórica do STF em 2024, que descriminalizou o porte de cannabis para uso pessoal. A evolução das políticas reflete tanto mudanças sociais quanto avanços científicos, posicionando o Brasil como um potencial líder na regulamentação da cannabis medicinal.
Summary
This essay outlines the timeline of legal milestones related to cannabis in Brazil, from its introduction by African slaves to modern decriminalization. It covers the initial regulatory attempts in the 19th century, international influences in the early 20th century, and the repressive policies from the 1930s to the 1980s. Significant advancements began in the 1990s with discussions on medicinal use and drug policy reforms, culminating in the historic 2024 Supreme Court decision that decriminalized cannabis possession for personal use. The evolution of policies reflects both social changes and scientific advancements, positioning Brazil as a potential leader in medicinal cannabis regulation.

A história da cannabis no Brasil é longa e complexa, envolvendo uma série de eventos e mudanças legais que refletem tanto a evolução das políticas públicas quanto as transformações culturais e sociais ao longo dos séculos. Desde sua introdução no país pelos negros escravizados até as discussões contemporâneas sobre descriminalização e uso medicinal, a cannabis sempre foi um tema polêmico e multifacetado. Este ensaio busca traçar uma cronologia detalhada dos marcos legais relativos à cannabis no Brasil, com um foco especial na cannabis medicinal, e contextualizar esses eventos dentro de uma perspectiva internacional mais ampla.
A Chegada da Cannabis ao Brasil
Introdução pelos Escravizados Africanos
A cannabis chegou ao Brasil no século XVI, trazida pelos negros escravizados provenientes da África. Eles utilizavam a planta para diversos fins, incluindo usos recreativos, medicinais e religiosos. Os africanos tinham um conhecimento profundo sobre a planta, e a introduziram na cultura brasileira, onde começou a ser conhecida como “maconha”.
As práticas relacionadas ao uso da cannabis pelos africanos incluíam fumar suas folhas e flores secas, muitas vezes em rituais religiosos ou como forma de aliviar o estresse e a dor. Essa introdução inicial estabeleceu as bases para a presença da cannabis na cultura brasileira, embora seu uso tenha sido, desde o início, estigmatizado e sujeito a repressão.
Primeiras Regulamentações e Proibições
Século XIX: Criminalização Inicial
A primeira tentativa de regulamentação da cannabis no Brasil ocorreu em 1830, no município do Rio de Janeiro, onde um decreto proibiu o uso da planta, especialmente entre os escravos. Essa legislação inicial refletia um esforço de controle social sobre a população negra e suas práticas culturais.
O decreto de 1830 especificava punições para os escravos que fossem encontrados usando a cannabis, incluindo castigos físicos. Este movimento fazia parte de um esforço mais amplo para disciplinar e controlar a população escravizada, suprimindo suas práticas culturais e religiosas.
Internacionalização da Proibição
No início do século XX, o Brasil começou a alinhar suas políticas de drogas com as tendências internacionais. Em 1924, durante a Segunda Conferência Internacional do Ópio, realizada em Genebra, a cannabis foi incluída na lista de substâncias controladas. Esta conferência marcou o início de uma série de convenções internacionais que influenciaram a política de drogas global, incluindo a do Brasil.
A inclusão da cannabis nas convenções internacionais refletia uma crescente preocupação com o uso de drogas e sua associação com comportamentos desviantes e criminosos. No Brasil, essa preocupação levou a uma intensificação das políticas de controle e repressão, com a cannabis sendo cada vez mais vista como uma substância perigosa e sem valor medicinal.
Décadas de 1930 a 1960: Reforço da Proibição
Convenção de 1936
A Convenção de 1936, realizada em Genebra, reforçou a proibição da cannabis em âmbito internacional. O Brasil, signatário da convenção, intensificou suas próprias políticas de repressão ao uso da planta, refletindo o crescente estigma associado à cannabis.
Durante este período, o Brasil promulgou uma série de leis e decretos que aumentavam as penas para o uso e o tráfico de cannabis. A planta era associada a comportamentos imorais e criminosos, e seu uso era visto como uma ameaça à ordem pública e à saúde da população.
Lei de 1940
Em 1940, o Brasil promulgou o Decreto-Lei nº 2.848, conhecido como Código Penal, que incluiu artigos específicos sobre drogas, tornando a posse e o uso de cannabis ilegais. Este foi um marco importante na formalização da proibição da cannabis no país.
O Código Penal de 1940 refletia as preocupações da época com a moralidade e a ordem pública, e estabelecia penas severas para o uso e o tráfico de drogas. A cannabis continuava a ser vista como uma substância sem valor medicinal e altamente perigosa, e seu uso era criminalizado sem distinção entre usuários e traficantes.
Décadas de 1970 a 1980: Guerra às Drogas
Influência dos Estados Unidos
Nos anos 1970, a política brasileira sobre drogas foi fortemente influenciada pela “Guerra às Drogas” dos Estados Unidos. Esta política, promovida pelo governo Nixon, visava erradicar o uso de drogas através de medidas severas de repressão e controle. No Brasil, isso se traduziu em leis mais rígidas e no aumento da criminalização dos usuários de drogas.
A influência dos Estados Unidos foi evidente nas campanhas de conscientização e nas políticas de repressão adotadas pelo Brasil. A cannabis foi particularmente visada, com campanhas que a associavam a comportamentos delinquentes e à degradação moral.
Lei de 1976
A Lei nº 6.368, de 1976, conhecida como Lei de Tóxicos, foi um exemplo da intensificação dessas políticas. A lei aumentou as penas para tráfico de drogas e estabeleceu medidas rigorosas de controle e repressão. A cannabis continuava a ser vista principalmente como uma substância ilícita sem valor medicinal reconhecido.
A Lei de Tóxicos de 1976 refletia a abordagem punitiva da época, com foco na repressão e na criminalização dos usuários. A distinção entre usuários e traficantes ainda não era clara, e muitos usuários de cannabis acabavam sendo tratados como criminosos.
Anos 1990: Início das Mudanças

Pressões Internacionais e Regionais
Nos anos 1990, houve um movimento global em direção à reforma das políticas de drogas. Países como a Holanda começaram a adotar políticas mais tolerantes, e a Organização das Nações Unidas (ONU) começou a reconhecer a necessidade de políticas mais equilibradas que incluíssem a redução de danos e o tratamento.
Esse movimento global influenciou o Brasil, onde começaram a surgir discussões sobre a necessidade de reformar as políticas de drogas e adotar abordagens mais humanitárias e baseadas em evidências. A distinção entre usuários e traficantes começou a ganhar força, e a ideia de políticas de redução de danos começou a ser discutida.
Primeiras Discussões sobre Cannabis Medicinal
No Brasil, começaram a surgir as primeiras discussões sobre o uso medicinal da cannabis. Movimentos de pacientes e profissionais de saúde começaram a pressionar por mudanças na legislação que permitissem o uso da planta para tratar condições médicas específicas.
Essas discussões foram impulsionadas por relatos de pacientes que encontravam alívio em tratamentos à base de cannabis, especialmente para condições como epilepsia e dores crônicas. A mídia também começou a cobrir histórias de famílias lutando por acesso a tratamentos com cannabis, aumentando a pressão pública por mudanças legais.
Anos 2000: Avanços no Uso Medicinal
Lei de 2006
A Lei nº 11.343, de 2006, conhecida como a nova Lei de Drogas, representou um avanço significativo. Embora a lei mantivesse a criminalização do tráfico de drogas, ela introduziu a distinção entre usuários e traficantes, e abriu espaço para discussões sobre políticas de redução de danos e tratamento.
A nova Lei de Drogas foi um marco importante na evolução das políticas de drogas no Brasil. Ela reconheceu a necessidade de tratar os usuários de drogas de maneira diferente dos traficantes, e abriu caminho para abordagens mais humanitárias e focadas na saúde pública.
Primeiras Autorizações para Uso Medicinal

Em 2014, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) autorizou, pela primeira vez, a importação de medicamentos à base de cannabis para uso medicinal, especificamente o CBD (canabidiol). Esta decisão foi um marco importante na regulamentação da cannabis medicinal no Brasil.
A autorização da ANVISA foi resultado de uma combinação de pressão pública, avanços na pesquisa científica e o reconhecimento crescente dos benefícios da cannabis medicinal. Pacientes e seus familiares que dependiam desses medicamentos finalmente tiveram acesso legal a tratamentos que melhoravam significativamente sua qualidade de vida.
Anos 2010: Consolidação do Uso Medicinal
Regulamentações de 2015
Em 2015, a ANVISA regulamentou o uso do CBD para fins terapêuticos, permitindo a prescrição de produtos derivados da cannabis para tratamento de diversas condições médicas. Esta regulamentação foi resultado de pressão de grupos de pacientes e avanços na pesquisa científica que demonstraram os benefícios da cannabis medicinal.
A regulamentação de 2015 estabeleceu critérios claros para a prescrição e o uso de medicamentos à base de cannabis, proporcionando um quadro legal que garantiu o acesso seguro e controlado a esses tratamentos. Esta foi uma vitória significativa para os defensores da cannabis medicinal no Brasil.
Expansão das Autorizações
Nos anos seguintes, a ANVISA continuou a expandir as autorizações para o uso medicinal da cannabis, permitindo a importação de produtos contendo THC (tetrahidrocanabinol) e estabelecendo regulamentações mais claras para a produção e comercialização de medicamentos à base de cannabis no Brasil.
A expansão das autorizações refletia a crescente aceitação e reconhecimento dos benefícios terapêuticos da cannabis. Com mais produtos disponíveis e uma regulamentação mais clara, mais pacientes puderam se beneficiar de tratamentos à base de cannabis.
Descriminalização e Avanços Recentes
Discussões sobre Descriminalização
Nos últimos anos, houve um aumento significativo nas discussões sobre a descriminalização da cannabis no Brasil. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) iniciou o julgamento de um caso que poderia descriminalizar o porte de drogas para uso pessoal. Embora o julgamento ainda não tenha sido concluído,
ele representa um avanço significativo no debate sobre a reforma das políticas de drogas no Brasil.
Julgamento do STF em 25 de Junho de 2024
Em 25 de junho de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) finalmente concluiu o julgamento sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. Esta decisão histórica marcou uma mudança fundamental na abordagem do Brasil em relação às políticas de drogas.
A decisão do STF foi baseada em argumentos de que a criminalização do porte de pequenas quantidades de drogas viola os direitos fundamentais à privacidade e à autonomia pessoal. A maioria dos ministros votou a favor da descriminalização, estabelecendo novos parâmetros para o porte de drogas para uso pessoal.
Impacto da Decisão do STF

Mudanças na Legislação
A decisão do STF levou a mudanças imediatas na legislação brasileira. O porte de pequenas quantidades de cannabis para uso pessoal foi descriminalizado, e novos critérios foram estabelecidos para diferenciar usuários de traficantes. Esta mudança proporcionou um alívio significativo para milhares de pessoas que anteriormente enfrentavam processos criminais por posse de pequenas quantidades de drogas.
Políticas de Redução de Danos
A decisão também abriu caminho para a implementação de políticas de redução de danos mais abrangentes. Organizações de saúde pública e ONGs agora têm mais liberdade para desenvolver programas que tratam o uso de drogas como uma questão de saúde pública, em vez de um problema criminal.
Reações da Sociedade
A decisão do STF gerou diversas reações na sociedade brasileira. Enquanto muitos celebraram a medida como um passo importante em direção a políticas de drogas mais justas e humanitárias, outros expressaram preocupações sobre o potencial aumento no uso de drogas e a necessidade de medidas adicionais para garantir a segurança pública.
Marcos Internacionais
Influência Internacional na Política Brasileira
A descriminalização da cannabis em vários países, como Uruguai e Canadá, e as mudanças nas políticas de drogas em estados dos EUA, têm influenciado o debate no Brasil. A reclassificação da cannabis pela ONU, que reconheceu seu valor medicinal, também tem sido um fator importante na mudança de percepção sobre a planta.
Esses exemplos internacionais forneceram modelos para o Brasil considerar em sua própria reforma das políticas de drogas. A experiência de outros países demonstrou que políticas mais tolerantes em relação à cannabis podem ser implementadas sem necessariamente levar a um aumento significativo no uso de drogas ou a problemas sociais.
Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961
A Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, promovida pela ONU, foi um marco importante na regulamentação internacional das drogas. Esta convenção estabeleceu um sistema global de controle de drogas que influenciou diretamente as políticas nacionais, incluindo a do Brasil. A cannabis foi classificada como uma substância altamente controlada, refletindo o consenso internacional da época sobre seu uso.
No entanto, a reclassificação da cannabis pela ONU em 2020, que reconheceu o valor medicinal da planta, representou uma mudança significativa. Este reconhecimento impulsionou reformas em vários países e forneceu uma base científica e legal para a regulamentação do uso medicinal da cannabis.
Convenção de Viena de 1988
A Convenção de Viena de 1988, que se focou no combate ao tráfico ilícito de drogas, também teve um impacto significativo nas políticas de drogas do Brasil. Esta convenção reforçou a necessidade de cooperação internacional no combate ao tráfico de drogas e estabeleceu medidas rigorosas para o controle de substâncias.
O Brasil, como signatário da convenção, implementou políticas de controle estritas que refletiam as diretrizes internacionais. No entanto, a crescente aceitação do uso medicinal da cannabis e a reclassificação pela ONU começaram a desafiar esses paradigmas, levando a uma reavaliação das políticas nacionais.
Perspectivas Futuras

Regulamentação e Comércio da Cannabis Medicinal
Com a decisão do STF e a crescente aceitação do uso medicinal da cannabis, o Brasil está agora em uma posição única para desenvolver um mercado regulamentado de cannabis medicinal. A regulamentação clara e abrangente permitirá a produção, distribuição e uso seguro de medicamentos à base de cannabis, beneficiando pacientes que dependem desses tratamentos.
Empresas e organizações de saúde estão investindo na pesquisa e desenvolvimento de novos produtos à base de cannabis, e o mercado brasileiro tem o potencial de se tornar um dos maiores do mundo. Isso também pode estimular a economia, criando empregos e gerando receita através de impostos e exportações.
Educação e Redução do Estigma
Uma parte crucial do avanço na regulamentação da cannabis é a educação do público e a redução do estigma associado ao seu uso. Campanhas de conscientização e programas educativos podem ajudar a informar a população sobre os benefícios e os riscos da cannabis, promovendo um uso responsável e informado.
A redução do estigma é essencial para garantir que pacientes que dependem de tratamentos à base de cannabis não enfrentem discriminação ou barreiras ao acesso aos cuidados de saúde. Isso também pode facilitar a aceitação social e a integração da cannabis medicinal na prática médica convencional.
Políticas de Redução de Danos e Saúde Pública
A decisão do STF e as mudanças na legislação proporcionam uma oportunidade para o desenvolvimento de políticas de redução de danos mais abrangentes. Essas políticas tratam o uso de drogas como uma questão de saúde pública, focando na prevenção, tratamento e reintegração social dos usuários.
Programas de redução de danos podem incluir a distribuição de informações sobre o uso seguro da cannabis, acesso a serviços de saúde e apoio psicológico, e a implementação de estratégias para minimizar os riscos associados ao uso de drogas. Essas abordagens baseadas em evidências podem melhorar significativamente a qualidade de vida dos usuários de drogas e reduzir os impactos negativos do uso problemático de substâncias.
Conclusão

A cronologia dos marcos legais relativos à cannabis no Brasil mostra uma evolução significativa desde a introdução da planta pelos negros escravizados até as discussões contemporâneas sobre descriminalização e uso medicinal. A história da cannabis no Brasil reflete tanto as mudanças nas políticas públicas quanto as transformações culturais e sociais, e está inserida em um contexto internacional mais amplo que continua a evoluir.
A cannabis medicinal, em particular, tem ganhado reconhecimento e regulamentação, proporcionando novos caminhos para tratamento e melhorando a qualidade de vida de muitos pacientes. Com a decisão histórica do STF em 25 de junho de 2024, o Brasil deu um passo importante em direção a políticas de drogas mais justas e eficazes.
Espera-se que o país continue a avançar na regulamentação da cannabis medicinal, desenvolvendo um mercado robusto e seguro, ao mesmo tempo em que implementa políticas de redução de danos e promove a educação e a conscientização sobre o uso responsável da planta. A história da cannabis no Brasil é um testemunho da capacidade de mudança e adaptação das políticas públicas para atender às necessidades e realidades da sociedade moderna.