Associações de pacientes desafiam a criminalização e seguem produzindo remédios enquanto o Estado se omite

No vácuo deixado pela ausência de regulamentação, a desobediência civil organizada se tornou o caminho legítimo para garantir saúde a milhares de brasileiros.

Movimento associativo cresce apesar da falta de regulamentação

No Brasil, cerca de 50 associações de pacientes atuam na produção artesanal de óleo de cannabis para fins medicinais. Nenhuma delas possui autorização sanitária da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) ou de qualquer outro órgão público, pois não há regulamentação que permita ou discipline esse tipo de atividade.

As únicas normas vigentes, como a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 327/2019, tratam exclusivamente da produção industrial e da importação de produtos à base de cannabis, exigindo infraestrutura e padrões inalcançáveis para iniciativas comunitárias.

Diante disso, muitas associações de pacientes operam em regime de desobediência civil pacífica, fornecendo tratamentos para milhares de famílias que não conseguem acesso pelos meios oficiais.

Salvo-condutos judiciais são exceção, não regra

De acordo com levantamento de entidades ligadas ao tema, ao menos 40 salvo-condutos judiciais já foram concedidos no país, autorizando indivíduos e associações de pacientes a cultivar e produzir cannabis para uso terapêutico.

Entretanto, essa proteção é pontual e limitada: a maioria das associações de pacientes segue atuando sem respaldo judicial, sujeita a processos criminais, apreensões policiais e persecução legal.

Entre as acusações mais comuns estão:

  • Tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006);
  • Associação para o tráfico (art. 35);
  • Falsificação de medicamentos (art. 273 do Código Penal).
O caso BrisaLuz: exemplo de resistência e risco jurídico

Um dos casos mais recentes é o da Associação BrisaLuz de Famílias Atípicas, que enfrenta um processo criminal em andamento, com acusações de tráfico e falsificação de medicamentos.

A BrisaLuz, assim como outras entidades, sustenta que sua atividade é uma desobediência civil pacífica, baseada no compromisso com a saúde pública e na inexistência de regulamentação que permita a regularização de sua atuação.

Em nota, a associação afirmou:

“Não podemos e nem devemos parar com o remédio de centenas de famílias. Não fizemos isso sem saber das consequências e continuaremos fazendo até a regulamentação; quando sair a regulamentação, nos adaptaremos nos prazos da lei.”

 
Especialistas apontam para captura regulatória

Segundo especialistas em políticas de drogas e direito sanitário, a regulamentação da cannabis medicinal no Brasil caminha para favorecer principalmente a indústria farmacêutica e o agronegócio, deixando as associações de pacientes em uma posição de marginalização.

A ausência de regulamentação específica para a produção artesanal associativa cria um cenário de criminalização seletiva e de insegurança jurídica, especialmente para iniciativas ligadas à agricultura familiar e ao cuidado comunitário.

Não há disputa: a regulamentação da cannabis no Brasil está sendo capturada pela indústria farmacêutica

Atualmente, não há uma disputa efetiva entre o modelo das associações de pacientes e o modelo industrial de produção de cannabis medicinal no Brasil.

A regulamentação existente — como a RDC nº 327/2019 — atende exclusivamente ao modelo industrial, com requisitos técnicos e financeiros inalcançáveis para as associações de pacientes e pequenos produtores.

  • A ANVISA não regulamenta a produção artesanal associativa;
  • O Congresso Nacional não avança em projetos que reconheçam as associações de pacientes como atores legítimos na política de saúde;
  • O agronegócio e a indústria farmacêutica influenciam ativamente o processo regulatório;
  • As associações de pacientes seguem atuando no limbo, muitas vezes criminalizadas ou toleradas, mas sempre invisibilizadas.

“Infelizmente, não há disputa. Há captura. A regulamentação da cannabis no Brasil está sendo feita para a indústria, não para quem cuidou e cuida das famílias.”

 
Panorama: resistência em meio à criminalização

Diante da ausência de políticas públicas que incluam as associações de pacientes, estas seguem atuando em um ambiente de vulnerabilidade legal e pressão judicial.

Enquanto isso, grandes laboratórios se preparam para entrar no mercado de produtos canábicos, com preços e padrões que não atendem à realidade de muitas famílias brasileiras.

O modelo associativo, focado na produção artesanal e na solidariedade, permanece como única alternativa para milhares de pacientes, especialmente aqueles com menos recursos financeiros.

Serviço: legislação, julgados e fontes
Legislação relacionada
  • Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas): arts. 33 (tráfico) e 35 (associação para o tráfico);
  • Código Penal: art. 273 (falsificação de medicamentos);
  • RDC ANVISA nº 327/2019: regulamenta produtos de cannabis para fins medicinais, exclusivamente na via industrial.
Julgados importantes
  • HC 598.051/SP – STJ: reconheceu possibilidade de afastar tipificação penal quando não há risco à saúde pública;
  • Salvo-condutos coletivos: casos da APEPI (RJ) e da ABRACE (PB), autorizando cultivo e produção associativa;
  • HC 143.641/SP – STF: decisão relevante sobre direito à saúde e cultivo de cannabis para tratamento médico.
Fontes consultadas
  • Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA): resoluções e notas técnicas sobre regulamentação da cannabis;
  • Observatório da Cannabis Medicinal: dados sobre salvo-condutos e associações de pacientes atuantes no Brasil;
  • Associação BrisaLuz: declarações e documentos públicos relativos ao processo penal em curso;
  • Artigos acadêmicos e relatórios sobre políticas públicas de cannabis e direito à saúde.

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